A guerra de Troia já foi contada de diversas maneiras. Geralmente, a versão que sobrevive é aquela que ecoa a voz dos heróis — Aquiles, Heitor, Ulisses. São eles que ocupam o centro da narrativa, enquanto tudo ao redor parece girar em função de suas glórias, estratégias e vinganças. Em O Silêncio das Mulheres, Pat Barker inverte esse eixo e, com uma escrita firme e corajosa, entrega uma das versões mais humanas e dolorosas do mito.
A história começa no exato momento em que tudo se desfaz para Briseis. De rainha, ela se torna prisioneira de guerra. De senhora de seu destino, passa a ser “dada” como prêmio ao maior guerreiro dos gregos: Aquiles. O gesto, tão comum no mundo da guerra, revela de imediato o que será o tom do livro — um olhar sem floreios sobre o que significa ser mulher em um conflito onde seus corpos são tratados como troféus ou espólios.
Mas Barker não escreve sobre a guerra apenas para nos mostrar seu horror. Ela escreve sobre resistência. E é aí que Briseis se torna uma figura ainda mais potente. Obrigada a conviver com quem destruiu sua cidade e matou sua família, ela aprende a sobreviver num campo que não a enxerga como pessoa. No acampamento dos gregos, há outras mulheres como ela — exiladas, marcadas, forçadas a desempenhar papéis que não escolheram. E são nesses pequenos espaços de contato, de troca e de escuta, que Barker costura um tecido narrativo que me surpreendeu muito.
Briseis é a narradora da maior parte do romance, e sua voz é lúcida, amarga quando precisa ser, carregada de ironia e de uma força que nunca se manifesta de maneira grandiosa, mas sempre presente. Até mesmo personagens amplamente conhecidos da tradição épica — como o próprio Aquiles ou Pátroclo — ganham novos contornos através do olhar dela. Não são exatamente vilões, mas estão longe de serem os heróis idealizados que aprendemos a admirar.
O que mais me impressionou em O Silêncio das Mulheres foi a forma como Barker escava as entrelinhas do mito, dando espaço para o que geralmente é deixado de lado.
O silêncio, no livro, é também um espaço de opressão, de apagamento, mas que pode — aos poucos — se transformar em resistência. Briseis, ao narrar sua história, assume para si o poder de romper esse ciclo. No fim, o romance é menos sobre grandes batalhas e mais sobre o custo que essas batalhas impõem àqueles que nunca escolheram lutar.