Um crime choca os moradores de uma pequena cidade no interior do Brasil: uma mulher é queimada viva, em um ritual motivado por razões religiosas, a fim de purificar a vítima e endireitá-la para o "caminho do bem". A violência parece ter se tornado parte da paisagem: desde que uma comunidade evangélica se instalou na região, episódios do tipo se tornaram cada vez mais comuns. Cabe então ao leitor juntar fragmentos, seguir as pistas e acompanhar os rastros de uma mulher que tenta organizar a narrativa desse trágico acontecimento ― enquanto ela mesma tenta lidar com seus próprios traumas e a ausência de um grande amigo.Em Caminhando com os mortos , a premiada escritora Micheliny Verunschk constrói um romance inovador e assustadoramente atual, que demonstra como o ódio às mulheres e às minorias atravessa os séculos, sobretudo quando se vale do fanatismo religioso.
A narrativa é conduzida de forma fragmentada, pedindo que o leitor conecte as peças de uma história permeada por dor, injustiça e perdas. Micheliny Verunschk apresenta histórias que, enquanto tentam organizar os acontecimentos desse crime horrendo, lida com seus próprios traumas, incluindo a ausência de um grande amigo. O resultado é uma construção inovadora e íntima, que nos desafia tanto emocional quanto intelectualmente.
O tema central do romance é o fanatismo religioso e seu uso como ferramenta de opressão. Micheliny não poupa palavras ao expor como o ódio, mascarado por dogmas, atravessa séculos, perpetuando violência e exclusão. O livro conversa com com a gente de forma direta, revelando não apenas a brutalidade dos atos narrados, mas também as raízes culturais que os sustentam e os normalizam.
Além disso, o texto tem um caráter quase investigativo. Não recebemos respostas prontas, mas somos convidados a caminhar lado a lado com os mortos — simbólica e literalmente —, reconstruindo eventos e questionando as intenções por trás deles. Micheliny mostra que os rastros de tragédias como esta não se apagam, mas reverberam no presente, questionando quem somos enquanto sociedade.
Com uma escrita que equilibra precisão e sensibilidade, Verunschk constrói uma obra que é, ao mesmo tempo, desconfortável e necessária. Caminhando com os Mortos denuncia não só a violência extrema, mas também o ódio silenciado, as omissões e os cúmplices. É um grito de alerta para tempos em que, mesmo diante da modernidade, o retrocesso ainda se impõe por meio do medo e do preconceito.
Se você busca um livro impactante e que provoca reflexões profundas sobre nossa sociedade e as forças que moldam a desigualdade, esta obra é para você. Micheliny entrega um trabalho inesquecível, que nos faz olhar mais de perto para as nossas próprias narrativas. Recomendo fortemente!